19.6.08

regresso com uma barriga balão de 19 semanas. é à volta dela que voam os aviões, passam os barcos e os eléctricos, as pessoas a correr para não chegarem atrasadas (chegam na mesma), se comem gelados, voam também pássaros e libelinhas e pousam nas árvores, que na hora de menor calor se agarram e balouçam à brisa do vento, que por sua vez despenteia cabelos, penas e descompõe chapéus e laços. e cai a noite sobre o mar e chega, por isso, uma onda à praia, se compram sapatos, se fazem adeus aos tais aviões e eléctricos e às pessoas que passam a correr atrasadas. e no chile um escritor abre a janela já depois da manhã, e em áfrica se avistam, de um lado, girafas e do outro, a uns tantos, mesmo muitos quilómetros, a panela do couscous e se adivinha o aroma a especiarias que daqui a minutos se espalhará pela casa até ao pátio. em frança se fecha a-sete-chaves ao fim-do-dia a torre eiffel (às chaves guarda-as um homem com um grande bolso que gosta de comer sopa a meias com o gato enquanto sorri às valsas que tocam no giradiscos), e em Israel se lavam tapetes num riacho perto das oliveiras. também há a noite no Mékong e o cheiro a erva limão, janelas abertas em tóquio de frente para um vizinho que dança perto da banheira de lábios pintados, e o tango de buenos aires e outros afins, mas será mais simples e descomplicado dizer que tudo, absolutamente tudo, se avista daqui, da minha barriga.

25.7.07

to unveil the second clue

of an unfinished crime

Mr. B, you should start counting

from the second line.

1, 2, 13 (4), 14, 15

2, 3 (3), 4 (1), 7 (3), 25, 19, 20

8, 9

9, 11

21.6.07

sugestão para o 1º dia do Verão:
ir a http://www.julioresende.com/ e depois a 'listen' e depois a 'Luiza-Jobim'.

pensei à tarde como seriam os teus gestos. esperei ver-te. mas os meus estavam ausentes. as mãos fechadas a encerrar a extremidade do corpo, a terminar a possibilidade de rodear a tua presença.
queria ter-te mais perto, mas quando me chego a ti fico a observar-te de longe.

1.6.07


Lembra-me a minha infância,
os passeios a Lisboa com a minha mãe em que sorvia os pormenores das ruas.

30.5.07

hoje foi um dia passado em alfama a dividir a tarde com um amigo. encontrei (a que seria) a loja dos meus sonhos e balões para pôr à janela. já começaram as decorações para os santos. o lavadouro de alfama está aberto das 9-12h e 14-17h. aconselho.
é bom aproveitar lisboa para lá da minha janela, o meu quintal.
Lazy Days, M.Ward

À porta do prédio ouvia-se já a máquina a trabalhar, como que a coser o fresco do átrio à expectativa do vestido novo, os pontos da agulha sentidos nas escadas de madeira galgadas a correr até ao primeiro andar. O tecido comprado noutro país, noutros tempos. Protegido por papel de seda branco já amarelecido que se revelou intacto onde se sobrepunham as dobras para encerrar o embrulho; aberto uns dias antes, lentamente, a conceder um aroma estranho à história contada e à colcha da cama, impregnando-as para sempre naquele irrelevante fragmento de tempo que perduraria até depois da infância, numa fotografia que seria tirada três dias depois. Flores azuis num fundo branco. Um folho, tal como tinha pedido. Acordou durante a noite, ansiosa. Apenas um único corpo deitado na cama da mãe. Amanhã iria tocar o telefone para descerem as duas. Uma não regressaria a casa até anoitecer. Outra sentar-se-ia perto da janela durante horas, a apagar presságios do que poderia correr mal. A querê-la de volta mais cedo.
Desceram minutos depois de desligar o telefone.
- Prometo que te acabo o vestido hoje. Diverte-te querida.
Dentro do Mercedes novo respirava-se quase apenas perfume.
- Aceita a bolacha que a Ofélia te dá, não sejas malcriada. Está melhor a tua avó?
- Sim, está no sofá.
- Esta miúda tem cada uma. Olha lá os pés no banco! Já não está no hospital a tua avó?
- Não, está no sofá.
- Vou levá-la ao médico, pá. Só a mãe é que não vê que a miúda não tem a cabeça assente na terra.
- Não me apetece a bolacha, desculpe Ofélia.
- Come a bolacha que a Ofélia te deu. Comprou-as para ti.
Então não dizes nada do carro? Não gostas?
- Estou um bocadinho mal disposta.
- Põe o cinto, pá. Estás doente? Se calhar está doente. Já comeste alguma coisa hoje? Se calhar ainda nem deu nada à miúda para comer. Vamos ali comprar um iogurte.
- Já comi, obrigada. Estou mal disposta.
- Estás mal disposta...O teu primo Rodolfo recebeu um prémio por ser tão bom aluno. Vês?
- Ele não é meu primo.
- Tas mesmo malcriada, hã? Deve ser lá das companhias da tua mãe. Não é teu primo porquê? A tua mãe além de fufa ainda te põe porcarias na cabeça? Esta é a tua família. Ai a porra. Vá. Olha lá os pés! Tas a chorar porquê?
Vá... Tens fome? Vou parar aqui. Vai lá buscar um iogurte para a miúda.
- Não quero, obrigada. Não quero comer. Estou mal disposta.
- Ai a porra. Vai lá buscar o iogurte, Ofélia! Estou aqui parado porquê?
- A miúda diz que não quer. Se ela não quer...
- Ela sabe lá. Vai lá porra! Estou mal parado. Olha a porta, pá!
Tiveste boas notas?
- Sim.
- Tiveste boas notas? O teu primo foi o melhor da escola.
Lá a amiga da tua mãe quis que passasses da segunda para a quarta, mas a tua mãe não quis... nem perguntou nada a ninguém. Essa também é uma delas, essa directora. Enfim...
- Tiveste boas notas? Não tens a quem sair burra, minha filha.
Tanto tempo, Ofélia. O que tiveste lá a fazer? Anda, entra lá que já é tarde, pá.
- Não podia passar à frente das pessoas.
- Não batas com a porta, porra!
A tua avó está lá a dormir no sofá, é?
- Não, está só sentada.
- Estás a desdenhar a atenção que as pessoas estão a ter contigo? Nunca te faças de parva. Não és burra nenhuma! Nunca te faças passar por burra. Nem faças dos outros parvos. Ainda te falta crescer muito, minha filha. Tens muito que aprender. Ai...
E a tua mãe já está a trabalhar?
- Sim.
- Ai sim? Pois... imagino...ela tem muitos conhecimentos...
E a casa nova? Ainda hão-de exigir-me que pague a renda. Têm a mania das grandezas, depois olha.
- A casa é bonita. A vizinha tem um cão. Damos-lhe bolachas que a mãe comprou.
- Nem convidaram para ver casa nenhuma. Devem ter convidado outras pessoas...Ainda apanhas uma doença por causa do cão. Ai a tua mãe tem dinheiro para andar a comprar bolachas de cão? E tu se calhar nem comeste nada ainda. Tens comido legumes?
- Comi muito. A mãe dá-me muitos legumes.
- Ofélia dá o iogurte à miúda.
- Eu não quero, obrigada. Eu estou mal disposta. Podes parar?
- Ai a porra! Aonde é que eu vou parar o carro agora! Tas mal disposta porquê?
Mas que...! Vê lá se a miúda tem febre? Vens toda à fresca. A tua mãe devia ter-te vestido uma coisa mais quente.
- Eu não tenho frio. Quero vomitar.
- Oh que porra! Paramos aqui na bomba, se este cabrão me deixar passar.
- A miúda não tem febre.
- A mãe quis que eu trouxesse outro casaco, mas eu é que não quis.
- Vai lá com a miúda à casa de banho.
- Anda querida. A Ofélia vai contigo. É bonita a tua casa?
-Quero vomitar. Eu vou sozinha.
- A Ofélia vai contigo. Ofélia, vê lá se há para aí um casaco ou uma camisola à venda.
- Aqui? Aqui na bomba não se vendem essas coisas.
- Vê lá, pá, estou a pedir-te. E vai lá com a miúda.
Não sejas malcriada!
- Anda querida, a Ofélia vai contigo.
- Não, quero ir sozinha, obrigada. E não preciso de nenhuma camisola.
- Então vai lá. A Ofélia está aqui fora.
- Ofélia! Vomitou, ela?
- Acho que sim.
- Achas que sim? Então não foste com ela?
- Fui. Mas ela não quis que eu entrasse.
- Não quiseste porquê? És malcriada? Não vês que as pessoas querem ajudar-te? Tens o nariz muito levantado, tu...tens, tens. Não quiseste porquê? Tens alguma coisa contra a Ofélia?
- A miúda não quis, não ia entrar à força.
- A miúda sabe lá o que quer. Ainda tens muito que crescer, minha filha, até fazeres o que te apetece. Ai...
Vomitaste? Deves ter comido porcarias. O que é que comeste ao pequeno-almoço? Alguma porcaria! Bebeste leite, ao menos?
- Sim. E comi pão e queijo.
- Queres um sumo? Dá aí um sumo à miúda. Mas não comeste fruta.
- Não quero, obrigada.
- Mas não queres nada porquê? Estás armada em malcriada? Recusas tudo o que te dão, é?
- Mas eu vomitei...
- Vomitaste...ainda gostava de saber porquê. Que porcarias é que comeste? Ontem jantaste o quê? Hambúrguer?
- Não, peixe. Com brócolos e cenoura.
- E então a tua casa nova é bonita?
- Para que é que queres saber se a casa da miúda é bonita, Ofélia? Também queres uma casa nova, é?
- É uma pergunta como outra qualquer. Estou só a falar com a miúda.
- Sim, é bonita. A Mi está a fazer-me um vestido.
- Então agora tratas a tua mãe pelo nome? Mas que raio de ideia é essa? A tua mãe dá-te umas liberdades muito estranhas.
...Ah, sim? Ela tem jeito para isso, lá para a costura.
- A minha mãe não disse nada. Eu é que lhe chamo Mi.
- Minha mãe? Porque dizes minha mãe? Sei bem que é tua mãe! Não estamos a falar da mãe de mais ninguém. Ai...para que é o minha mãe.
Julgas que as pessoas são parvas? Julgas que não entendem? Ai...porra para isto. ...Vamos ai a um sítio qualquer comparar um casaco, ou uma coisa qualquer.
- Não é preciso, obrigada. Eu não tenho frio. Eu tenho muitos casacos. A mãe comprou-me dois casacos novos.
- Eu é que sei se é preciso, não és tu! Não respondas! Comprou-te casacos novos? Ainda bem que estão ricas. Vamos lá comprar uma roupa quente. E umas botas. Andas para aí com os pés quase descalços.
- Mas não está frio. Foi a minha prima que me comprou as sabrinas. E o vestido.
- Eu não preciso que te comprem nada. Essa gente...é uma puta, essa também.
- Foi a mãe que lhe deu dinheiro para ela ir às compras comigo...
- Estás a responder-me, é? Ainda bem que a tua bem está rica e não precisa de nada. Se calhar foi alguma das amigas que lhe arranjou o trabalho. Se a calhar foi essa cabra da tua tia.
- Não digas mal da minha mãe! ...Nem da minha tia!
- Estás a gritar? Ai a merda...está calada e não me respondas! Malcriada. Sabes o que é que essa fufa da tua tia fez? Não fales sem saber...ela e a tua mãe. Um dia conto-te, minha filha... Não me levantes a voz. Só eu é que sei! Além de fufa é uma filha da puta.
- Vá, acalma-te. Estás muito enervado. Olha que a miúda está a chorar.
- Vai mandar acalmar...estou enervado estou. Só eu é que sei...
- Vá, querida, toma um lenço que a Ofélia tem aqui. O pai está enervado, vá.
- Estou enervado, estou. Que porra esta... Venho buscá-la, pago-lhe o colégio, as roupas...ainda hão de querer vir buscar mais dinheiro. Os favores das amigas e dos amigos não devem chegar.
- Ai...vá...estás a chorar porquê? Vá, estacionamos aqui e vamos comprar uma camisola e umas calças para a miúda. O vestido que te dei no ano passado já não te serve? Já não deve servir...o da prima deve ser melhor... olha que não, minha filha. De certeza que ela não to foi comprar onde comprámos o outro. De certeza que não custou a mesma coisa.
...Quem é que te deu essa mala?
- Foi a tia.
- Ah, sim?...Filha da puta. Para que é que trouxeste essa mala? Fizeste de propósito, tu. Mas que porra...fufas e putas. Anda lá, pá. A Ofélia já desapareceu. Onde é que se enfiou? Mas que porra...
Anda lá, pá. Despacha-te. Ofélia! Estás com pressa, é?
Vamos comer primeiro. Entramos já neste.
- Já sabes que o papá ganhou um prémio?
- Ela quer lá saber...Mas devias de querer, minha filha, para saberes que não descendes de gente burra. Devias de te aplicar nos estudos e seguir ciências, porque se o teu pai tem cabeça para isso tu também tens. Não tens razão nenhuma para seres burra. A tua mãe, apesar de tudo, também não o é. Por isso tu só podes ser inteligente. Vê se trabalhas. Tiveste boas notas?
- Sim.
- Vá, chama lá o empregado. O que é que vais comer?
- Eu estou mal disposta.
- Mas que porra! Maldisposta porquê? Não estás bem ao pé das pessoas?
Vais comer peixe, então. Se estás maldisposta, não te faz mal nenhum.
Vais comer a vitela, Ofélia? Então eu como isso contigo, quero lá saber. Como uma coisa qualquer.

Julho 2005
Nos últimos 3 meses olhei para ti vezes sem conta. A objectiva da máquina ficava parada pela tua pele. Os detalhes, em ti, queria procurá-los por dentro. Abrir-te a carne, dissecar os músculos com precisão, passar os meus dedos no lado de dentro das tuas costas. Recompor-te. As datas só agora me servem para ordenar os momentos. O tempo, até agora, apenas serviu para medir ausências. As estações, os meses, nunca se mediram pela enumeração de uma data. Não foram os dias contados pelos dedos, não falámos do jejum imposto pelas horas que faltavam para uma visita, nunca datas marcaram acontecimentos. A não ser agora, na medida que me é possível; na medida infalível de contar a distância.
Por vezes dou por mim a procurar-te do lado de fora da janela, no cinema, a revelar-te nos químicos, no tempo de exposição do papel. Segundos apenas, minutos, no máximo.
Rio-me do gosto que sempre me deu guardar-te. Como dobrar a camisa de dormir antiga de uma avó já morta. Desdobrá-la, lavar-lhe a cambraia, retirar o amarelo do tempo. Voltar a dobrá-la, guardá-la na gaveta. No processo de restauro da minha memória, ela volta a andar pela casa. A trança negra a descer-lhe pelas costas, depois enrolada ligeiramente acima da nuca. Ela em pé. Ganchos pretos e dois travessões de tartaruga. Que ritual magnífico. Ser mulher, ser avó era dividir comigo as mãos que entrelaçavam o meu fascínio naqueles gestos. Dividir comigo os gestos que acabaram por ficar nas minhas mãos de menino. Dividir contigo o lado de mim que não ladeia o teu corpo ainda tão novo de homem, dividir contigo os gestos que poisaram nos teus cabelos. Dividir contigo uma fotografia tirada atrás de um biombo, umas meias tuas, uma mala cheia de cartas das quais duas foram escritas por ti.

Junho 2005
Naquele ano festejámos a chegada do Verão. Ao final do dia quis apagar a cicatriz recente, o risco meticuloso na tua pele ainda vermelha que denunciava os centímetros de avanço, a crescente proximidade do fim.
Esperei por ti aqui, junto da entrada, quando os dias eram já apagados pelo teu corpo. Adiámos a ida ao teatro, adiámos a festa de aniversário, os cafés no parque, os passeios sem destino certo, o movimento para lá da tua varanda, sem ser o dos barcos e o dos carros na ponte, o das pessoas. Algumas regressariam indiferentes no próximo sábado com os cães, como se pudesse ser esse um gesto banal, premeditado. Tivesses tu ainda, tivéssemos nós, a garantia de todos os minutos dessa semana. Desejei tantas vezes que não voltassem a passar naquele pedaço de relva para que pudesse ao menos questionar o que lhes teria corrido mal, pressupor a hipótese de uma tragédia. Acalmar a inveja que sentia daqueles passeios patéticos e repetidos, do rasto fresco que as bicicletas dos filhos deixariam no caminho de terra seca, do acumular tão provável dessas marcas semana após semana.
Começámos por embalar o presente como se mudássemos de casa. Por registar cada minuto, concretizar disfarçadamente os últimos desejos fazíveis. Antes de nos cansarmos de contar o esgotar dos dias.
Coloquei-me junto da ombreira da porta. Queria ter-te pedido quando chegásses, que aguardasses junto das escadas, com a luz a clarear as pontas dos teus cabelos, a tornar mais fria a imagem escondida das tuas costas. Queria ter-te guardado naquela imagem antes de saber que um dia esperaria por ti sem que voltasses a chegar. Queria ter relembrado contigo algum fragmento de uma tarde antiga de Julho. Queria que esperássemos ansiosamente, mais uma vez, pela luz do fim de tarde em Marraquexe na esplanada do Café de France enquanto o calor torcia o ar à nossa volta e o tornava irrespirável.
A necessidade de um registo fotográfico vive disso, de fragmentarmos os dias para editarmos os momentos, relíquias guardadas num álbum, numa caixa de bolachas, num sótão, numa gaveta que evitamos abrir. De imprimir os momentos para os trazer de volta. Reparo agora pela primeira vez, nesta fotografia, no canto direito da tua boca.

Setembro 2005
Saiu hoje no jornal mais uma homenagem ao teu trabalho. Numa das fotografias aparece a tua sombra, um registo de ti no registo da tua ausência.
Às vezes tenho como certo que sou capaz de te guardar como se guarda uma recordação. Como um registo multiplicado vezes sem conta pelas ruas onde sei que passarei sem ti, uma memória fotográfica que não se transformou numa fotografia antiga, uma falta aceite com a resignação de um sorriso.
Faz me falta saber de ti. O teu nome perto do meu.
Lembro-me de chegares devagar, de tomares conta do tempo em que os meus olhos demoravam a medir a paisagem à medida dos teus; das tuas costas, dos teus cabelos, do teu colo. Tudo tão teu. Deliciava-me a conhecer-te os gestos, a tua boca e a minha, a tua pele. A minha a descolar-se lentamente, revirada sobre a carne viva. O meu corpo encostado ao teu, os nossos odores misturados no prenúncio do teu cheiro a terra.
Nunca sacudi o resto de pó que deixei por reanimar. Habituei-me ao prazer da tua memória e misturei-o com o pó de prata que resta das fotografias. Nelas vou imprimindo a tua história já gasta na minha.

Fevereiro 2003
Quando os teus olhos se viraram para mim, o teu pescoço e os teus ombros deslizaram pelo mesmo movimento lento (ou teria sido o ar quente a demorá-lo) e pararam por segundos ao mesmo tempo que o som das mesas dos cafés e das máquinas, que se apagaram as vozes e os aromas da cozinha. Só o teu cheiro e os pássaros continuaram a espalhar-se nos espaços transparentes por entre as coisas – a terra e o céu, o desejo no meu corpo e o teu.
Poderia ter sido assim durante horas. Poderia ter-te rodeado com as minhas pálpebras abertas sem que desses conta. Aproximar-me da tua boca e trocar a falta de vento pelo teu respirar. Mas os nossos momentos nunca iriam ser longos e as horas haveriam sempre de ser medidas em círculos dobrados em quartos pelos nossos dedos. Dividimos o tempo e pedimo-lo de volta, com a mesma objectividade com que se pede a devolução de um livro.






25.5.07

she took from her head a golden hair
it is threaded on the dress i'm about to bear.


day one

the building is cold.
emptied with white.
to grow up in Lisbon (the journeys there).
having their gestures reflected in the mirrors through my acts.
parting from that; to go back intuitively.
indentations within, and others more visible onto the skin.
objects that become my property.
arms supporting the body against an open window – a photograph taken.
the scratched paint on the wall and the overused pavement
joining together as a corner,
faking a single line in an image.


day two

the inside of a fruit.
the segments.
the noise of a dress being made – the cotton flowers quickly moving across the table
the mutual expectancy of seeing the form change,
(a construction of many things between us),
a shared gaze, like a secret.
today the same space is smaller and emptier of the people that slept there.
the walls divide different things, more strictly, by other individual languages.
still images keep the existence of a landscape.
re-collections.
re-creations of memories. as they feel.


day three

the detail of an indentation,
the sign of any kind of happening,
any kind at all.
the few lines, part of a story (the only fragment ever told), are enough.
from that,
launched into any kind of happening,
any kind at all.
Good morning, Mr Rabbit! What are you doing here, good old friend?
What about you Partridge? What brings you here? – asks the rabbit.”

satisfaction.


day four




day five

the building was high.
a bird was recovering from an injured wing in the balcony.
it took a few days.
after that it would come back sometimes. then it stopped coming.
they prepared a small bed and food.
at the same time life would go on as usual,
the sound of the door, the floor being cleaned,
the onions frying along with the constant smell of coffee.
then it was a big dog, recovering also.
a dogs leg partly covered in blood, much of the flesh exposed.
it stayed in the kitchen between the oven and the cabinet that divided the room,
quiet,
in pain.
ointments, some home made,
it took weeks.
the onions frying ready for the chicken cut in small parts.
the sound of dried bay leaves in a bag. tomatoes and salt. the floor being cleaned.
the dog resting. happy.
it recovered and went away,
coming back very often.


day six

holding the breath unintentionally,
the cold water surrounded the skin arresting the body for a few minutes.
after that, the temperature becomes bearable.
only me inside the water.
all of them (don’t remember how many),
all women, by the side of the river.
the time is soft and slow enough
to lay the fingers in between the seconds,
gliding just above us,
like the warm wind.
the smell of pine nut shells being crushed between a small stone and a rock.
a little radio.
the highest of mountains.
the skin of the feet being pierced by the things on the soil.
a little pain is expected,
no need to notice – the feet still bare.
the smell of water and earth together.
something passes on amongst us like a sound that can not be heard.
no need to notice.



20.5.07

- Lembro-me de quando sonhava comigo já adulta. Com menos dores do que agora. As dores que me custavam a acreditar que não fossem fáceis de tratar.
- Peço um café para ti?
- Não, outro copo de vinho por favor.
- Tens frio?
- Não.
- Mas encosta-te a mim na mesma. Eu tenho.
- Que pedintes, nós. O que fazemos agora?
- Apertamos os atacadores dos ténis como se estivéssemos simplesmente aqui sentados a escolher um sítio para irmos a seguir. Não achas que já devias ir usando sapatos de mulher?
- Que asno me saíste. Entrelaça os teus dedos nos meus como se estivéssemos a criar uma forma com utilidade mas nos faltasse um lápis.
- Sempre te vais embora?
- Não sei.
- Paraste?
- Para que serviria uma forma destas?
- Para guardar fragmentos dos dias.
- Afinal tem utilidade, então.
- Paraste?
- Vamos embora, sim?
- Não me ouves?
- Não.

3.5.07



para espreitar.


... do livro Ciconia Ciconia, de Andrea Petrlik Huseinovic, escritora e ilustradora croata.
(Termina com o depois (da guerra) já florido).

1.5.07

Fotografias de P. Cava, poemas de W. Whitman

O amor é uma palavra imensa, com sílabas de chocolate. O amor é uma carta onde se diz tudo o que a boca não quer dizer. O amor é saber o nome completo das flores e dos pássaros.

José Jorge Letria

ALEX



Fotografia de Robert Parkeharrison, do livro The Architect's Brother.

Um dos livros que me faz (tanta) falta.

Bom 1º de Maio!

10 minutos de Susana Seivane. Para dançar!
(soubera eu 'postar' aqui o video...o you tube por vezes também não me obedece. deixá-lo.)


Drawing by John Collier (1980), inspired by a quote from Carl Sandburg's poem "Mill Doors": "You never come back. I say goodbye when I see you going in doors, the hopeless open doors, that call and wait and take you then for -- how many cents a day? How many cents for the sleepy eyes and fingers?"

30.4.07


Melancolia, António Dacosta

Vitorino Nemésio acerca de António Dacosta:

amanhã é Maio em lisboa.
hoje já é madrugada de Maio em Buenos Aires.

- estou? ana? veste-te bonita e anda ter comigo. encontramo-nos no princípio da rua da rosa. quero passear por lisboa com o meu fato novo.
- compráste um fato?
- mais ou menos. e uma gravata. trouxe o fato do emprego. depois vou devolvê-lo. não posso tirar a etiqueta para mo aceitarem de volta.
ana, despacha-te. estou à tua espera. daqui a cinco minutos.

que tarde boa, julian...

e Afeganistão... (site da aïna nos links para as notícias mais actuais)





http://www.ainaworld.org/news/news.php?news=20070219

Aïna Photo is the first group gathering Afghan women and men photojournalists taking a critical look at their country after years of silence.
During long years of violence and war, Afghanistan has only existed through foreign spotlights cast upon this ill-treated country. Today, as the Afghan people are going through a democratization and reconstruction phase, and enjoy freedom of speech again in their country, providing them with the means to share their own outlook on Afghanistan is critical.As a result, the Aïna Photo Department has been training professional photojournalists since September 2002, and has given them the opportunity to disseminate their work by ensuring the implementation of high photography standards and, most of all, by setting up the first Afghan photojournalism agency:
Aina Photo.


Hoje é para ir até ao Irão

28.4.07

uxía senlle (só um bocadinho...enquanto n está domado)

http://www.cdroots.com/audio/uxiaestou2.mp3

Luísa truxera com ela o saco onde tinha guardado o resto dos livros há minutos atrás, sem se dar conta. Atava as duas asas. Um saco vazio.
O Largo de Camões estava cheio de gente. Passava entre o barulho como se a manhã não tivesse ainda terminado. Como se não terminasse, não se largasse dela.
Fechou o casaco e agarrou os braços a amparar o copo com as mãos, suportada por elas, onde depositava o desfalecimento das suas forças.
Sentar-se-ia à janela do comboio. Arrepender-se-ia. Até de ter tido um filho. Pesar-lhe-ia depois a culpa insustentável de querer largar tudo. Consolar-se-ia no instinto ávido de o abraçar e de não mais afastar dele os braços para o compensar de desejar por segundos que não tivesse nascido.
Tinha o delinear dos lábios esgotado, a face inerte. Adormeceria até chegar à estação perto de casa. E horas depois, erguida por um esforço meramente motor. Os dedos cravados nas pernas, dentro dos bolsos. Duas moedas, apenas, num deles.

27.4.07


III
Do sorriso da avó reluz um dente de ouro, amarelo saudoso como a luz das janelas. Uma recordação que prendeu à boca, perto do som que enternece as palavras ditas todos os dias e dos beijos. Começa a contar até 12, baixinho, mas apressa os números a partir do 5, para que tudo se antecipe como nos filmes projectados ao domingo quando, por engano, a fita anda para a frente com mais velocidade. A mãe corre de um lado para o outro no quarto, à procura dos sapatos, como todos sábados. O F... está acordado a somar pelos dedos as horas até amanhã às 8 e conta até 12 ao mesmo tempo que a avó (sem saber, mas ela sabe). E os números entrelaçam-se com o ruído dos bichos da madeira e as tábuas a ranger e a valsa fora de tempo da concertina e do violoncelo. Todos suspiram em ritmo acelerado. O pai também, enquanto recorta partituras. O vento faz encher e desencher as roupas que secam às janelas e assobia nos espanta espíritos feitos de papel de música. E junta-se ao som dos bichos da madeira, das tábuas a ranger, à valsa da concertina e do violoncelo.
Até que a avó e o F... chegam ao 12. Todos suspiram e voltam ao tempo certo. Quase adágio, sussurra a avó. Cai um bocadinho de nuvem sobre o telhado e o gato salta e aninha-se no fato das fotografias. Batem à porta, como é habitual todos os serões.

Boa noite Luzirna.
Boa noite Ulmerno.
Esqueci-me do raminho.
Era de quê?
Tanto fazia. De dois dedos.
De quê?
De conversa.

A valsa continua. Doce. Anoiteceu tarde porque é Verão.
Bem-vindos à Vila Triste dos Pinga-amores.



eu comprei um cravo e pu-lo numa jarra. (25.4)
ALEX; «carequinha-e-pardal», Nuno Fontes

(há pessoas que ficam sempre e por isso não vale a pena habituarmo-nos à ideia de que deixaram de estar)


Andrea Dezsö: Cover of Print Magazine's 2004 May/June issueEmbroidery on white cotton canvas

Escreveu-me o henrique:
(...) já não tenho idade para perder pessoas. apareceram uns dentes de elefante. quando era pequenino queria ter um elefante. era normal.
(...)sozinho numa casa vazia cheia de luz e sol. talvez o meu pai tenha pensado o mesmo quando aqui entrou há 40 anos - é boa altura para vida nova. gostava que visses o sol na janela.

Christine Borland, Spirit Collection: Hippocrates, 1999, Installation View (Detail)

(...)is composed of almost one hundred drop-shaped vessels containing a leaf reduced to a skeletal form by bleach. The tree was grown from seeds of the Plane Tree of Hippocrates where it is said that Hippocrates taught his students.


Rachel Whiteread, Ghost, 1990
(...) a negative plaster cast of the space of an entire room in a London Victorian townhouse.

II

De um lado está uma estrada e o mar. Do outro podem subir-se quatro montes baixos, áridos, onde crescem algumas flores. Muito poucas. No meio há um terreiro com uma igreja, que serve também como tela de cinema.
Dentro de casa a cadeira de baloiço faz ranger a madeira do chão e o ruído mistura-se com o dos passos, cada vez mais próximos, com o da concertina e o do violoncelo.
A avó está sentada, embala os suspiros para a frente e para trás, enquanto borda o pequeno-almoço num tecido apoiado sobre o vidro da moldura da fotografia do marido, como faz todas as noites. Guarda depois os panos de cambraia bordados na gaveta dos chocolates. E volta a suspirar quando pendura a fotografia na parede 133 vezes furada, porque o prego está sempre a cair. 134, contando com o furo acabado de fazer.
Lá fora deixaram de ouvir-se os passos. A música pára por alguns segundos enquanto três vozes fazem soar um ai...longo e tremido como a luz. Mas, lenta e crescente, retorna a valsa.

26.4.07

ora bom dia dona maria!
há tanto tempo eu não a via...
ah! que lindas meias, que lindo chapéu!
mas...que bicho é que lhe mordeu?

traz o sorriso de pernas pró ar
e cada passo, cada suspirar...
como vai o seu gato chalado,
o dos dois bigodes de rebuçado?

assim, assim
um bocadinho às pintas
que engoliu a tinta de pintar o sarampo

(...)

querida ritinha,
em troca da receita da morangada de banana: uma saia mal enjorcada com uma nódoa de chocolate e uma rima.

- Menina Ana!
- Olá, D. Natividade!
- Então não me atendia o telefone porque estava a conduzir...
- Não, esqueci-me dele em casa. O que aconteceu?
- Chegou uma encomenda para si.
- ...vem de Paris? Uma encomenda de Paris?
- Parece-me que sim.
Que bom é termos crescido juntos no Verão. Por vezes também no Inverno.
E na Primavera e no Outono ter esperado que o Verão chegasse.
Obrigada Leo. Tenho uma borboleta de prata no braço. 23.4


Michaël Borremans, Manufacturers of Constellations

I

Nem muito longe, nem muito perto ouvem-se passos na estrada. Uma concertina e um violoncelo acompanham o escuro a alongar-se pela noite. A música é muito lenta, como quando se olha para o céu e se segue o trajecto de cada gota de chuva. Quando chove, claro. Não é o caso. A música é uma valsa. Dá mesmo vontade de dançar.
As janelas têm luzes muito amarelas e quentes que fazem tremer as sombras e brilhar tenuemente os cata-ventos. As casas são baixas, quase sem cor. Poder-se-ia dizer que tudo parece triste, se não se estiver atento a um ou outro pormenor.